Vou tentar encontrar palavras que descrevam tudo pelo que passei nas últimas horas...

Cheguei agora da experiência mais alucinante e perigosa da minha vida.

Eram 20h quando saí de casa e fui ter ao Concelho Tutelar. Esperava-me uma operação de resgate de meninos de rua. Surgiu esta oportunidade de vivenciar uma operação em que se tentaria resgatar o máximo de miúdos de rua que trabalham a vender seja o que for, desde cds, flores de crochê, engraxar sapatos. Entenda-se que estes miúdos são, como se diz aqui, pirralhos de 8 ou 9 anos. São apanhados todos os que tenham até 18 anos.

A Inês foi na primeira carrinha de resgate, eu e a Tânia ficámos no Concelho Tutelar à espera... Quando chegaram só se ouviam gritos de miúdos exaltados, a correr, a tentar fugir... até que um se aproxima de nós, fixa a Tânia e diz qualquer coisa como: "Estou vendo sua cara, quando sair te vou roubar na rua". Começou bem...

Fiquei a observar, sem reacção, via tudo aos gritos, a empurrar ou bater nos miúdos, a ver um cenário que nunca tinha visto na minha vida. Isto porque esta operação mete os membros do Concelho Tutelar, polícia, assistentes sociais, psicólogos, vigias, educadores sociais...

Só reagi quando me chamaram para ir para a segunda carrinha de resgate. Disse firmemente que ia, no meio da confusão, não ia perder esta experiência por nada, mas o meu medo era superior a tudo... inexplicável. Aquela vozinha interior a dizer "n vás é periogoso"e "vai, vai, vai"... Só pensava numa pessoa: a minha mãe que nunca se iria perdoar por me ter deixado vir para o Brasil.

Partimos e parecia tudo calmo, os miúdos já tinham percebido que havia polícia na rua e devem ter fugido. Mas como a estratégia está bem montada os miúdos não têm como fugir... depressa a carrinha se encheu, destes miúdos vendedores de rua e de miúdas de 14 ou 15 anos prostitutas, a mais nova devia ter uns 12 anos. Impressionante, mas impressionante mesmo.

Chegámos ao Concelho Tutelar, os meninos sairam todos, sempre com a polícia atrás... ficam numa sala ampla onde podem fazer tudo o que querem. Mas não entra nesta sala ampla brincadeiras de miúdos... porque eles não podem fazer aquilo que já não têm...

O futuro deles? O motivo do resgate? Ligar às famílias, de cada um, dizer-lhes que andavam na rua a vender. Seria tudo isto muito bonito se não fosse essa a família a mandá-los ir para a rua vender, tentar que as pessoas, com pena, lhes comprem algo. Miúdos que são capazes de matar e que são altamente perigosos... que se drogam, que imploram para cheirar cola/pretróleo, que tinha sido apreendida ao mesmo tempo que eles. A polícia não abandona por um momento só toda esta operação de resgate.

Este país é o que é... nunca vai mudar. E se falam na corrupção dos políticos então essa mesma corrupção começa muito abaixo dos políticos. Começa nas pessoas que trabalham neste mesmo Concelho Tutelar. Um motorista que rouba duas caixas de pastilhas à minha frente, que podem parecer simples caixas de pastilhas mas depois o menino aterrorizado verifica que lhe faltavam duas caixas e teria de explicar aos pais que só tinha ganho dois reais por ter vendido duas caixas, mas que na verdade faltavam lá quatro...

E outro que lhe roubaram o dinheiro que tinha ganho, por alguém lá do Concelho. O miúdo a implorar e a apontar para o suposto ladrão. Mas claro, ele não passava de um filho da puta de um pirralho (e é assim mesmo que são chamados, e pior ainda...) que estava a chorar por lhe terem roubado o dinheiro, logo os superiores não acreditaram.

Mas de facto ele foi roubado pelo mesmo motorista que roubou as pastilhas... Irónico não?

Agora imaginem um miúdo destes chegar a casa sem as coisas vendidas e sem o dinheiro... não se imagina, acho que só eles saberão o que isso é...

(isto é possível acontecer porque quando são apanhados é-lhes retirado tudo, tudo mesmo o que tenham. E no final, quando são devolvidos à família só lhes é dado o dinheiro. As coisas que vendiam não são devolvidas porque é uma forma deles não irem vender essas coisas de novo. Mas obviamente que voltam a ir...)

Foi a pior noite da minha vida, em que tive mais medo, em que só me apetecia chorar, em que queria levar aqueles miúdos dali para fora, para um mundo melhor. Em que eles, por piores que sejam e só controlados através da agressão, como se vê na televisão: os polícias a bater nas pessoas e todos a bater em todos, mereciam tudo menos isto. Mas acabam por merecer devido àquilo em que se trasnformaram, em que os transformaram.

Eu não tive a coragem de lhes gritar, bater ou puxar... cobardia ou não, falta de profissionalismo ou sensibilidade, não tive coragem. Talvez venha a ganhá-la caso precise dela, talvez nunca consiga...

Seja como for não vou repetir esta experiência aqui. Foi das mais enriquecedoras que tive e sei que foi das que mais vai marcar o meu percurso profissional e pessoal. Mas é preciso muito fôlego para aguentar isto... apesar de serem crianças, no fundo merecem ser tratadas assim pois são extremamente violentas. Mas eu não deixava de lhes ver a inocência de crianças (que definitivamente não tinham) e o olhar triste.

E dava-lhes o mundo se pudesse, o mundo colorido que nunca viram nem nunca irão ver... certamente.

São 3h da manhã... estou a terminar este post, mas não há lugar para o sono depois de tudo o que vivi hoje.